lá fora estamos quebrando as paredes
que nunca sustentaram nada
aqui dentro me guardo
em inconstante construção
no escuro do silêncio
afago o peito afogado
pelas amargas cuspidas do dia
é preciso adormecer a saliva
pra engolir a manhã
se trata de uma obra inacabada
que não serve a ninguém
como o estado de coisas que colecionamos na vida lá de fora da janela
faz sol
e não poderíamos continuar
sem ele
é preciso guardar a saliva
pra digerir a manhã
Boa chuva é meu primeiro livro lançado via editora, representando uma importância diferente na minha trajetória artística. É um livro de poemas no seu campo expandido, em cruzo com as visualidades, uma característica da minha poética. Os poemas foram tecidos junto do meu universo de experiências afetivas, espirituais, filosóficas e políticas, que atravessa uma trajetória de vida marcada pelas sabedorias da terra, atravessa o que hoje é meu campo de pesquisa e o fato de eu ser yawô - iniciada nos cosmossentidos do Candomblé.
O livro se compõe de quatro partes: nascente, pororoca, lamaçal e cabaça. Narra o trânsito simbólico das tessituras da minha vida, desde as águas doces da mata úmida interiorana de Conceição do Formoso – nascente que me pariu -,à pororoca como um movimento do encontro subjetivo entre rio e mar. O lamaçal sendo um portal ancestral para onde o mar me trouxe e a cabaça como um retorno ao útero-terra, tronco ancestral que me fez brotar existência poética.
Esse é um livro-água, que celebra minhas avós, minha mãe e minhas irmãs, que celebra a vodun Nanã como ventre primeiro, que celebra as continuidades ânimas e o que há de comum habitando nosso sensível - as correntezas que lavam e banham nossas histórias e memórias.