Amara Moira

Amara Moira

É travesti, feminista, doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp (com tese sobre o “Ulysses” de James Joyce) e militante dos direitos de pessoas LGBTQIA+ e de trabalhadoras sexuais. Integra a Associação Mulheres Guerreiras, o Grupo Identidade e o Coletivo TransTornar, todos de Campinas, sua cidade natal, e o Coletivo A Revolta da Lâmpada, de São Paulo. Tem publicado artigos sobre gênero e literatura, é autora do livro autobiográfico “E se eu fosse put”a (2016, republicado em 2018 como: “E se eu fosse puRa”), do capítulo também autobiográfico “Destino Amargo”, presente em “Vidas Trans – A coragem de existir” (2017), e do monólogo escrito em pajubá, a língua das travestis, “Neca”, incluído na antologia “A Resistência dos Vagalumes” (2019). Sua produção textual figura na bibliografia de cursos de pós e de graduação em universidades do país todo e do exterior. Atualmente reside em São Paulo capital, é colunista da Mídia Ninja e professora de literatura no cursinho online pré-vestibular Descomplica.

POEMA AUTOBIOGRÁFICO


corpo que não se deve levar à praia

olhos não te deixam quieta

onda vem quieta

vem e te cobre

te descobre inteira

seio um pra cada lado

parte de baixo peixe

bikini já não é mais roupa

tudo o que se perguntam sobre o meu corpo

tudo o mar sabe

tudo e eu tenho segundos

um dois três quatro

pra me recompor

antes de voltar à tona

PELA DÉCIMA VEZ


confia em mim, sou casado,

doador de sangue e, por Deus,

primeira trava com que eu

saio é você, olha o estado

em que ele fica, babado:

te dou mais dez, nem assim?

você tem cara que fez

teste, o meu deu nem um mês,

aliança e tudo, eu sou, sim,

casado, ó, confia em mim.

MEMÓRIA CURTA


Mal deita e já vem que vem

doido arreganhando o cós,

agora não engrossa a voz

nem mostra o bíceps nem

lembra que é homem de bem:

na cama, pra travesti

diz que é a primeira vez,

primeira do mês talvez,

pois mal precisou-se ali

de gel, só encostar no edi.

SONETO EM VERSOS DECASSÍLABOS QUE A POETA FEZ POR OCASIÃO DAS TRINTA E TRÊS PRIMAVERAS DE TERRA GRAMMONT, LEOA BRUXA


dois anos quase da primeira vez

que nós nos vimos e eis (ex?) hoje o chá

numa xícara só, fazendo agá

eu, até que você, sei lá, talvez,


diga se tudo bem juntar os três

sabores (posso?) que me lembram das

nossas noites, melissa, cidreira e es-

pinheira santa, já que não vens cá...


as duas longe, hoje não tem chamego,

tudo, o lençol demais, o tique-taque,

tá que só sabe me causar amuo.


chá em sua homenagem, já me achego

à cama e a xícara, tal qual Bilac,

sagro e soergo e sirvo e sorvo e suo.

QUASE


seu vestido veste-se por baixo

os pés primeiro, a tatuagem

pele branca a se cobrir de azul

juntos então os joelhos

mão repuxando o vestido

perde-se de vista

o tufo de cabelos pretos


pernas já toda cobertas

aguarda sem resistência

que chegue sua vez o umbigo

dai se divisam os pés

num deles rama de flor

rama quase raiz

que o vestido, em se vestindo,

como que arranca à terra


seio, um se revolta, enrosca

no vestido, recusa a coberta

mas vêm as mãos

mãos vêm "sem mas"

e da recusa em se deixar cobrir

impresso em alto relevo

o bico apenas