José Manuel da Silva

Cores e Letras


por que me odeiam? por que me evitam?

por que me batem? por que nos matam?

eu tenho sangue, eu tenho ossos, eu tenho carne

eu tenho um corpo, eu respiro, eu vivo

eu penso, eu falo, eu estudo, eu trabalho, eu consumo

eu tenho direitos

sempre que acordo penso em morrer

aos poucos apagam minha alegria de viver

são tantas pedras que não sei mais se vale a pena me proteger

sexo, desejo, identidade, gênero, orientação

nada disso nos reprime

moral, atraso, política, violência, religião

tudo isso nos oprime

o mundo é diverso, a vida é plural

coexistir não pode ser tão difícil assim

há muitos tons de azul, há mais flores que o jasmim

se minha sexualidade ofende, se meu comportamento agride

o problema pode não estar em mim

por que me abusam? do que me acusam?

de querer ser livre? de sair sem medo? de poder sonhar?

nós somos muitas cores e muitas letras

sempre existimos, sempre sofremos

evitados, segregados, condenados, confinados

trancados, queimados, usados, violentados

não queremos muita coisa, não impomos nosso jeito, nosso leito

só exigimos o que vocês sempre tiveram por direito

o mínimo necessário de respeito


Rabiscos sem voz

 

vocês

sim, vocês aí

que ecoam bordões, que destroem reputações

maltratam, ofendem, agridem, matam

sem conhecer

sem entender

sem perceber

o ser

que está antes do parecer

é tudo negação, rejeição, perseguição

verdadeira obsessão

ódio gratuito, desrazão, religião

e muita hipocrisia

antropofobia, sociopatia

a natureza definha, agoniza

a vida se esvai, pessoas-números invisíveis

desgovernos insensíveis

a política corrói

a economia destrói

e vocês, cidadãos de bem

ocupam-se, arrogantes, ignorantes

da sexualidade alheia

fechando os olhos em negação

para a própria realidade

a vestal com a vizinha do lado

o machão com o personal sarado

vejo vocês no banheirão

observo vocês no carnaval

cumprimento vocês no bacanal

atendo vocês no hospital

o problema não é o que fazem

isso demanda respeito

o problema é como agem e reagem

puro preconceito – medo? recalque? despeito?

é preciso ouvir os sinais

ler os avisos

bastante precisos

o mundo mudou, descongelou

e não tem volta

o rio segue em frente, em leito ardente

ignorando sua ultrapassada, injustificada revolta

não importa quem sou

ou aonde vou

apenas crio versos

diversos, inversos, adversos, controversos

sou arte, sou álcool, drogas, lágrimas, puro sentimento

sou amor, crítica, palavras e atrevimento

vejo vocês na missa de domingo

na saída do bingo

eu só registro, disseco, analiso

descrevo em poemas retorcidos

o que vocês fazem escondidos, enrustidos

coisas boas, coisas ruins, amor, paixão, sangue, sêmen e afins

com alguém.

amém.