Neuza Doretto

sem nome 

Um corpo ideal? Dos meus sonhos?
O meu mesmo. Um outro não ia aguentar as pontas.
Implacavelmente simples: as coisas são o que são.
E você é quem é. Pegar ou largar. Então pegue-se.
A gente é por todos os lados
frente
costas
meio
por dentro
por fora
quando se morre eis a pergunta: morreu de quê ?
Ora,  morreu de todos os lados, de  mover-se, de virar-se
Morreu de vida, num gesto, com a comida no prato.
Morreu de si mesma
Que desacato....
Então, me ame!
Me ame por enquanto
Me beije por enquanto
Ilusório
Infinitamente provisório
Mais uma vez
Mais um mês
Mais vezes
Mais meses
Hoje e daqui a pouco
Esfuziante e louco
Desejo ou sorte
Ou
Qualquer coisa de morte


[ multi — conto ]

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Taxa de Embarque


Não ia perdoar, não. Também não era pecado pra ser perdoado. Foi sacanagem. Isso ninguém esquece. Ela me sacaneou, puxou meu tapete. Queria num dia, noutro não queria mais. Exatamente assim: surtava, desmanchava tudo, nem aí com o próximo. O próximo estava distante.

O celular tocou às onze e meia da noite. Eu acertando o relógio. Eu com a mochila pronta. Eu com o tesão na alma. Eu no voo 4054 para os braços dela.

— Oi?

— Oi... então, olha, temos um probleminha. Fui num show ontem à noite, conheci uma menina e a gente transou. Ela está em casa. Então, não fica legal você vir. Aconteceu e resolvi te avisar, antes que você embarcasse amanhã.

Foi assim. O chão abriu e o coração ficou roxo. Uma garotinha na parada. Dor da porra, indignação e mala desfeita. Assim, tudo foi para o inferno: as palavras e qualquer sentimento que tive um dia por ela.

Mais nada.

A dor da rejeição não durou mais que 24 horas. Uma  mulher apaixonou-se por mim no jogo de bilhar: 42 anos, simpática e cheia de querer cozinhar em casa. Aquilo veio na hora certa, salvou-me por um mês, dois meses, quatro meses. A vida corria solta nas minhas veias, eu feliz na minha rotina. Tanta coisa boa rolando. Amigos. Festas. Colesterol controlado. Rim e fígado filtrando tudo. Que bom. Já nem pensava nessa história. Mas lembrava de vez em quando, um foco embaçado.

Ontem abri meu e-mail: susto e calafrio. Aquele nome na minha caixa de entrada: "preciso conversar com você".

Vadia, vagaba, não venha zonear minha paz de novo, quer falar comigo, o quê? O que, meu Deus?! Será que pegou alguma doença e vai se matar? Vai ver que foi isso. Daí lembrou das boas trepadas que tivemos e veio pedir perdão. Mas ia me contar isso pra quê? Pra aliviar. Ela é cheia de culpa mesmo, culpa porque trepa, culpa porque não trepa. Tão ruinzinha da cabeça.

"Preciso conversar com você, estou corroída de remorso".

Corroída de remorso o caralho. A garota não comia direito e ela queria recaída comigo. Veio comer na minha mão.

E me chupou com toda a culpa desse mundo. Funcionava no remorso.

— Pronto, agora vou te levar pra rodoviária. Tá perdoada.



[ bônus ]

Infância


Eu errava. 

Desobedecia minha mãe que costurava meus vestidinhos com cianinha. 

Fugia com o carrinho de roliman do vizinho.  E voltava, rasgada, sem camisa. Eu queria ser menino. Nasci menino. Foram anos de análise,mas eu continuava menino. Crescendo. Triste pelo tamanho de minha bunda e coxas. Futura " mulher gostosa ". Namorava alguns meninos; não  pelo desejo. Mas pela vontade de ser eles. De viver de peito aberto.