porque não há escolha
já fizeram isso
através de leis e tratados e mapas
impuseram distâncias veladas
cercaram nossa vida, aldeia do mundo
negam meu direito de posse
negam meu sangue em suas veias
impedem meu povo de existir
nossas terras devastadas, confiscadas
servem mais para o gado
que para nossos filhos
servem de celeiro para os grãos
que nunca chegarão à nossa cuia
abandonam-nos em esquinas frias
e para nos esquentar ateiam fogo
pois é mais fácil eu não viver
assim, sobram espaço e riqueza
minha cultura reduzida a pó de minério
transformada em arte de museu
escondendo a verdade
com a ajuda da mídia
não querem minha nudez
não querem minha língua
não querem meu canto
querem meu solo, minha lápide
querem minha mendicância
querem a favela urbana
alimentada pela cor da minha pele
o nosso hoje
1500 revisitado
*
cavo a cova dentro em mim
como cavam no Amazonas
as covas da dor do mundo
rasgando a terra ardente
depositando nossos mais caros entes
e entre dentes sofremos calados
cansados e impotentes
a falta de ar para respirar
oxigênio para viver
vergonha para seguir
arde nas veias o sangue ancestral
coagulado e relegado
indigno por ser pobre
ignorado por não ser nobre
sem valor por não ter cobre
observam as sepulturas
como se olha um pôr do sol
como se não fosse no quintal de casa
como se a vida não fosse suficiente
indiferentes e reticentes
esquecem-se que a doença
igualou raças, credos, culturas
instaurou a república da igualdade
onde antes coletivo
era apenas um substantivo
isolamo-nos no sofrimento
desapegamo-nos, desempregamo-nos
no acaso do descaso
esperamos da medicina
a salvação do corpo morto
no entanto, mais de meio milhão de cruzes
já cravadas na terra seca
aguardam preces, justiça
empatia, lembranças
esperança: a porta final