Mylena Godinho

oniricidade

(aos meus avós)


um corpo de terra batida acorda de dia 

sem saber as estripulias de outras formas de vida

tapeia o tempo como quem ia:

um bocejo de gato, uma partida

sonha uma lhama pela lama de Potosí ao Pantanal 

deita no voo de um caburé que canta um madrigal 

arquiteta um assovio no eco de um vagão de trem 

corre ao contrário do tempo para abrir o armazém

meio-dia mastiga umas caras sem fome  

línguas e mais línguas come

os dentes pintam telas, findam zonas

cospem caroços de azeitonas

repara pela tarde: 7 de ouros sob o assoalho 

bota histórias de amor para fora do armário 

cavuca o chão, planta hortênsia e manacá

carrega um caminhão de carrancas para o Ceará

monta um circo de pulgas com um cachecol remendado

transa em silêncio pela noite como quem faz bordado 

cria apodos à la barroco de Cochabamba

canta zis fados sobre uma corda bamba

essas meias-visões cavalgam inteiras oniricidades

salpicam nas lavouras rios de vontade

no avesso do meu corpo, as quatro partes

memória, cariño, cuidado, saudade



cigano


deite na canga, me escute e deixe

descansar um pouco o frescobol

por entre as pedras, a onda é feixe

na areia da praia, um banho de sol 

sem querer, fisguei um peixe

com minha boca de anzol 


ao brotar da pele esse oceano

ouço seu corpo inteiro pulsar 

estamos no meio do ano

e a linha da sua pipa corta o mar

cigano, eu não me engano 

quando quiser, vou te enredar